KYUDO- Uma arte marcial

Artigo de:  Carmo Ferreira

Publicado em: 2009-05-04


O Kyudo é uma Via de desenvolvimento físico, moral e espiritual, de realização do Eu.

 

A ambição desta arte marcial é legitimada pela sua elaboração ao longo dos séculos por milhares de homens e mulheres e pela pesquisa actual de um Kyudo moderno que se alimenta do passado.

Kyudo significa a Via (dô) do Arco (Kyû).

O Kyudo é considerado no Japão como uma das artes do Budo mais puras.

 

O drama da vida e da morte no tiro ao arco

A história do arco está intimamente ligada à humanidade. Na sua origem, o arco é uma arma de caça ou de guerra, sendo a sua função a de matar. Assim desde que o arqueiro coloca a flecha com intenção de atirar, vive o drama permanente da vida e da morte, da sua vida e da sua morte. Um mestre de Kyudo disse” a vossa primeira flecha deve atingir o alvo como para matar um inimigo porque se vós falhais, ele pode matar-vos”. Esta imagem faz lembrar ao arqueiro que ele deve colocar toda a sua alma em cada flecha como se esta fosse a última: “ Uma flecha, uma vida”. O tiro ao arco Japonês, fortemente penetrado desta evidência, não se limitou à sua função utilitária, mas foi investido duma dimensão simbólica e espiritual. “ O arco é o receptáculo que abriga as qualidades do guerreiro, em que as qualidades próprias do arco adquirem um significado quase místico”.

Um arco grande e belo

Nos tempos antigos, o arco japonês é simplesmente direito de uma só peça talhado na parte mais sólida do tronco de zelkova. A partir da idade média é construído segundo o método das lamelas coladas com o bambu em forma de dupla curvatura. O arco do Kyudo é longo e mede cerca de 2,20 m. A pega está colocada de forma assimétrica no terço inferior do arco permitindo atirar de joelhos ou a cavalo. A simplicidade da sua forma quase primitiva, a sua elegância e beleza são tais que para o Kyudoka as flechas e o arco são objectos de veneração (Tempyo) investidos de espiritualidade e utilizados com respeito.

Uma técnica de tiro particular

O tiro com um tal arco exige uma técnica especial que presta homenagem às qualidades do arco. O arqueiro seja dextro ou esquerdino, agarra sempre o arco com a mão esquerda. Ele abre o arco por cima da sua cabeça. A curva do arco inferior à pega é considerada masculina, dinâmica e poderosa, sendo a curva superior dita feminina, cheia de delicadeza e receptividade. O arqueiro exprime este equilíbrio universal dos contrários para abrir com elegância, dignidade e serenidade um tal arco. “Logo que o equilíbrio dinâmico do arco se confunde com o do corpo do arqueiro, no momento de abertura máxima, forma-se uma figura circular de grande beleza”. A percepção e a pesquisa constante de uma tal harmonia constituem uma parte essencial da prática do Kyudo.

O ritual e o xintoismo

A via dos Deuses (Xinto) é um conjunto de crenças e práticas relativas a divindades (Kami), forças naturais personalizadas em certos lugares, objectos e às vezes animais e homens vivos ou mortos (ancestres) . O arco é um dos três símbolos essenciais desta religião. No Kyudo, o respeito pelo Lugar da Via (Dojo) com a localização do Kamiza, os objectos específicos à prática, ( arco, flechas, luva, alvo…) e certos rituais e cerimónias resultam desta tradição próxima da Natureza. Assim o tiro de uma flecha pode ser considerado como um acto de purificação do arqueiro, tanto mais justo quanto o som da corda ao bater o arco (Tsurune) é de uma qualidade particular. Purificar-se deve ser entendido pelo restabelecimento da harmonia interior, eliminar o Mal e revelar o Bem.

A etiqueta e o Confucionismo

A cultura chinesa através de Confucius influenciou a cultura Japonesa desde os seus primeiros tempos. Confucius descreveu os três princípios da Sabedoria, Vigilância e Bravura.

Na vigilância inscreve a etiqueta e os seus valores éticos (Rei) para indicar o comportamento em relação aos outros (Girei), pais/filhos, homem/mulher, Mestre/aluno…

Ao mesmo tempo que adoptaram a etiqueta e o protocolo chinês, os Japoneses tomaram o cerimonial do tiro ao arco, utilizado pela aristocracia chinesa, considerado a expressão máxima do refinamento e da boa educação.

O tiro ao arco guerreiro e o Budismo Zen

Se o Xinto é uma religião dos vivos, o budismo implantado no Japão desde 552, aporta por sua vez respostas sobre a morte. Em 1191 o monge Eisai introduz o Zen e oferece uma solução ao paradoxo dos samurais: “Para viver é preciso morrer”. Se o guerreiro se agarra à vida, no momento do combate ele tem medo de morrer, o seu corpo mesmo bem treinado, inibe-se (bloqueia-se) por um instante decisivo e fatal. Ao invés se o guerreiro não está agarrado à sua vida, no momento crucial ele não tem medo da morte; o seu corpo bem treinado age em toda a liberdade, sem inibições, em «estado de graça» produzindo o golpe fatal logo que ele apercebe uma falha no adversário. O aporte do Zen torna-se determinante no desenvolvimento espiritual dos guerreiros.

Desta forma a influencia filosófica muito forte do Zen, adoptado pelos samurais como método de treino moral, permite hoje aos praticantes modernos do Kyudo uma melhor compreensão de si e do mundo envolvente.

« Não se trata de focar um alvo exterior, mas o arqueiro e o alvo estão unidos, integra-se o alvo a si mesmo. É preciso esquecer o arco que atira, esquecer-se si mesmo, fazer um com o arco e o alvo, esticar em direcção ao infinito sem conhecer o ponto de chegada…» dizia Mestre Anzawa

As armas de fogo

Desde o século XII ao meio do século XVI, os arqueiros representam a elite das gentes da guerra durante os numerosos combates que acontecem. A 25 de Agosto de 1543, três portugueses armados de mosquetes desembarcam na ilha de Kyushu. Estas armas mortíferas substituem os arcos nos campos de batalha. O tiro ao arco é conservado pelos bonzos e aqueles que seguem o seu ensino como uma disciplina interior, um suporte de meditação activa, uma prática do Zen em pé.

A Longa Paz e o Kyudo

De 1603 a 1868 é imposto pelos Tokugawa um longo período de paz. A Via dos Guerreiros (Bushido) desenvolve-se durante este período e o tiro ao arco torna-se uma Via para o DEespertar. «Em 1660 o Mestre do Arco Morikawa Kozan funda uma escola, Yamato Ryu, que faz a síntese entre o aspecto do cerimonial dos tiros da escola Ogazawara e o aspecto técnico da escola Heki. Ele utiliza pela primeira vez a palavra Kyudo, composto de dois ideogramas: Kyu = Yumi = Arco e Do = Tao = Michi = Via. Introduz pela primeira vez o conceito de Do no contexto das artes marciais

A época moderna

Durante a era Meiji (1868-1912), o Japão, fechado durante séculos, ocidentaliza-se bruscamente e o Kyudo corre o risco de desaparecer. A sua sobrevivência deve-se ao Mestre Honda Toshizane (1829-1911) professor de Kyudo na Universidade Imperial de Tóquio, que combinou elementos de tiro de guerra com os de cerimónia. O aluno mais célebre desta escola foi o Mestre Awa Kenzo (1888-1939) que teve por discípulos o Mestre Awa Heijiro (1887-1970) e Eugen Herrigel (1884-1955) o primeiro ocidental a receber o 5ºDan no Japão nos anos 20.

No início de 1930, a Dai Nippon Butokai convidou as diversas escolas de tiro ao arco a participarem na elaboração de uma regulamentação. Após enormes polémicas e discussões, chegaram a um acordo em 1934.

Em 1949 as autoridades de ocupação do Japão autorizaram a constituição da ZenNihon Kyûdô Renmei(ZNKR). Em 1953 puplica o Kyûdô Kyôhon, manual que consigna as normas actuais das formas, do comportamento e do tiro. É traduzido (sòmente o 1º de 4 volumes) em inglês pelo ocidental mais graduado da actualidade, Mestre Liam O’Brien, Kyôshi 7º dan.

O Kyudo na Europa

Mestre Onuma Hideharu (1910-1990) visita Paris, Hamburgo e Londres em 1967 e inicia os seus primeiros alunos europeus. Mestre Anzawa Heijiro visita a Europa em 1969. Mestre Inagaki Genshiro (1911-1995) forma praticantes na Alemanha.

A ZNKR é representada na Europa pela European Kyudo Federation ( EKF).

No Kyudo, aprende-se a utilizar a energia de maneira equilibrada repartindo-a por todo o corpo, e a utilizar somente a força necessária à realização da tarefa que se quer efectuar, nem mais, nem menos.

O processo de aprendizagem é longo e difícil. O treino (prática) deve sempre estar enquadrada em volta dos seguintes seis elementos: a verdade, a bondade, a beleza, o equilíbrio, a humildade e a perseverança.

O Kyudo elimina pouco a pouco as camadas protectoras em que nós envolvemos o nosso eu profundo, até que se revele a nossa natureza verdadeira.

Para pôr as coisas de uma maneira simples, o Kyudo revela as nossas insuficiências. Tudo o que nós somos revela-se no tiro. Cada um de nós tem a responsabilidade de fazer a sua auto avaliação e encontrar o seu equilíbrio em função dela.

A progressão na prática passa evidentemente pelo trabalho intensivo pessoal que compreende o tiro individual e em grupo: diferentes formas de tiro de cerimónia permitem trabalhar o desenvolvimento da harmonia, consigo mesmo e com os outros.

«Para julgar o arqueiro no Kyudo, não é necessário olhar o alvo, basta olhar o arqueiro. O seu corpo, está direito? Distendido? Os seus movimentos precisos e eficazes? Efectua movimentos inúteis, pisca os olhos ? No momento de largar, tem-se a impressão que a flecha atravessa a nossa alma? Eis o que é preciso observar num Kyudoka»

O espírito do Kyudo não tolera a competição. Esta manifesta-se na forma de torneios, mas não é mais que um suporte a um trabalho interior mais profundo sobre o «estado de não conflito» para ao qual tendem os praticantes.

«O objectivo da competição não é obter um perdedor. Deve-se ter o máximo respeito pelos outros candidatos. Conservar um espírito sereno no âmago da competição, isso é praticar verdadeiramente Kyudo.

O provérbio «mil flechas ou dez mil, cada uma deve ser nova» exprime bem a essência do Kyudo. Significa que não devemos ficar satisfeitos quando se “consegue” um tiro. É preciso sempre tentar fazer melhor. A ideia de não se permitir a si próprio um período de repouso para saborear um tiro com sucesso, pode parecer estranho. É no entanto este conceito, que separa o Kyudo de outras formas de arquearia onde se mede a perfeição normalmente em termos de eficácia técnica. Um dos princípios fundamentais do Kyudo é que um tiro, seja qual for, mesmo aparentemente perfeito, pode sempre ser melhorado. Não no plano técnico, visto que existe um limite para a técnica, mas no mental, o espírito, têm um potencial ilimitado de melhoria.

A prática do Kyudo é sem fim; a recompensa não é atingir a perfeição, mas persegui-la sem descanso. É necessário em primeiro lugar aprender as boas técnicas de maneira a praticar correctamente. A seguir é preciso passar a vida a tentar atingir o nosso tiro puro.

 

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